sábado, 11 de abril de 2009

À lama e aos vermes

Oh, a ciencia de ser o que não sou
Vou escarrar - com veios de sangue e manchas de fumo - um poema; só pra você, meu alazão de bunda vermelha.

Ai, a ciencia não é posia
A ciencia de ser o que não sou, de fingir haver onde não há
E me locupletar de vazio
E não saber mais que tipo de sangue eu tenho
No meu corpo

E vasculhar cada mínimo detalhe
Da podridão
Organica
Da poesia
e da mentira

- Mentira! Estou fingindo um primeiro de abril.
Sou só mais uma
Eu sou só mais uma
Não tente fazer passar despercebido
Que você notou que eu não sofro de verdade

Eu sou só ciencia
Sou fria como um sapo dissecado, mas não tenho as viceras pulsantes que atraem as moscas, nem o cheiro de éter para tirar a consciencia

Eu sou só
Método

Eu não tenho
- Talento.

Eu só sou um confronto inútil de idéia inúteis.

Liana Borges

quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

Minha menina

Era jovem e burra, a menininha. Loira, bronzeada, piercing no umbigo na barriga saliente. Dançava com voracidade algo duvidosa. Usava um perfume enjoativo, doce, daqueles que são capazes de empestar um elevador por horas. Vestia jeans e bustiê de paetês prateados. Tinha seios gigantescos, ainda que fosse mirrada e magrinha e não tivesse um e sessenta de altura, mesmo de salto alto.

Era prazeiroso assistí-la balançar os quadris sem ritmo algum. Como alguém que sacode as mãos no frio, só isso. Os paetês organizavam-se num padrão que me lembrava a bandeira de algum país. Seus peitos sacudiam-se, nus, desavergonhadamente livres dentro do bustiê e ainda sobravam para os lados.

Reparei que ela não levava bolsa e suas calças não tinham bolso. Paguei-lhe uma caipirinha e perguntei-lhe a idade. Pude perceber que não tolerava destilados.
Ela respondeu que tinha dezoito. Duvidei. Devia ter treze. Mas eu não interessava a ela. E a mim, só me interessava observar. Então sentei no bar só para reparar no quão decadente falsas virgens podem ser.

Que menininha safada, os rapazes deviam pensar.
Não deveria estar ali, mas estava, toda embriagada de hormônios pubescentes e cerveja quente.

Era mesmo bonitinha, essa menina, tinha umas coxas grossas e uma lordose enorme. Escorregava nos saltos, levantava e piscava para ninguém. Suas unhas eram roídas e o batom lhe causava alergia - sua boca estava toda inchada e vermelha.

Não era puta, não dava por dinheiro, mas não gozava quando trepava, nem devia saber como é. Podia ser menina de família; teria uma casa e um quarto decorado em motivos infantis. Ou talvez morasse na rua e o que eu antes sentira como perfume enjoativo misturado a suor fosse maquiagem barata e cola.

A música mudou; ela devia estar drogada ou bêbada, porque não percebeu que devia mudar o ritmo também. Continuou rebolando com as mãos nos joelhos até dar a todos uma boa amostra da calcinha preta de nylon que usava sob a calça justa. Continuou dançando assim por mais uma hora, durante a qual a música foi se tornando cada vez mais lenta, até que só sobrassem casais na pista. Cansada, ela resolveu ir embora.

Segui-a até o banheiro. Entrei. Fingi retocar o batom. Ela urinava na cabine oposta. Quando saí, identifiquei-me como aquela que lhe oferecera uma bebida. Ela sorriu-me com desdém e foi saindo.
Antes, porém, ofereci uma carona. Pareceu pesar os prós e os contras de aceitar a corona de uma estranha. Devia morar longe, porque cedeu. Fomos até meu carro. Seu nome era Ana Luíza. Confessou-me que não tinha realmente dezoito anos, mas quinze.

Ana Luíza bocejou duas vezes antes de cair no sono.




Liana Borges

segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

Quando sento tudo é pó
- não me atrai, esse estado das coisas-
Ai, que indecisão!

As coisas não são mais imaculadas.
- passa-me o sal -
Agora as tenho que bolinar para ver se ganham ares de mulher sabida

As coisas estão por si, agora.
Não se fazem mais estrofes de quatro versos.

sábado, 10 de janeiro de 2009

Não é nada

Há de se admirar este estado febril das coisas

Imundas, eu digo.
Lindas, ele grita.

Quase nada, na verdade

E eis aí que somos todos tudo
... O que há de belo não se alardeia
Esconde-se com carinho
de mãe.

E se mata com mãos atadas
De mãos atadas, ele berra
Isso não é nada. Relaxa.

Liana Borges

Artistalma

Sofri de besta que sou

Alma de artista não nasce da barriga da mãe da gente
Nasce no banheiro, na cozinha suja,
Na área de serviço.

É feita de riso fora de hora
De saliva dura que desce arranhando
De falsidade.

Sofro de besta que sou
Alma de artista é tinta que vaza da caneta e mancha tudo: os papeis, os livros e sobretudo a pele.
E não larga, não.

Não larga da gente, essa coisa. A gente caga mas não se livra dela.

Liana Borges

quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

Meu menino

I

Encontrei meu menino sentado nos degraus da vida. Solto por aí e todo perfumado, para quem quisesse apenas vir e apanha-lo. Convidei-o para entrar. Ele recusou e eu ofereci uma xícara de café e quem sabe um baseado. Nova recusa.
Me dava tanta pena vê-lo ali sentado. Todo lindo e com uns olhos rasos de lágrimas pisadas; hematomas lacrimais.
Elogiei sua nova tatuagem. Uma equação toda doida estampada bem no meio da testa. Agora ele se encolhia todo, para ficar do tamanho de um feto, de um embrião. Quase invisível. Não pude resistir à tentação de afagá-lo com as pontas dos dedos. Sua pele não era nem remotamente tão macia quanto aparentava de longe; pelo contrário, era áspera e úmida como cimento fresco.
Ele estava sujo de sal. Não sal da praia, nem sal de suor, mas sal de sujeira. Sal de quem não tomava banho há dias. Perguntei se estava com fome; ele disse que sim. Tirei umas notas amarrotadas da carteira e ofereci. Ele pegou, mas não se moveu. Sua letargia começava a me enfurecer; quis bater nele. Depois lembrei que ele era só uma criança desamparada. Queria colo, queria peito, queria berço e manta quente, mas eu não podia dar nada disso, então, fiz o contrário, deitei em seu colo.
Fui caindo lentamente num turbilhão de sono e tesão. Adormeci por alguns segundos. Foi o suficiente para acordar com a resposta à equação e a cabeça dolorida, de encontro ao degrau imundo e nu, sem meu menino. E sem minha carteira.

Liana Borges

quinta-feira, 1 de janeiro de 2009

O Comedor de Fezes

- Olha, seu doutor, eu já vim aqui mais de uma centena de vezes. Ninguém me acha a porra da doença. Só não me mande ir bater outro raio-x. É, eu sinto umas dores pelo corpo, sabe? Não consigo cagar nem comer. Fiquei brocha de repente. Sou jovem ainda, não tenho filhos nem sou casado. Toda noite acordo com uma frase na cabeça e anoto. Já enchi um caderno com elas. Sempre acho que é uma frase diferente, mas, quando vou ver, é sempre a mesma. Acordo de manhã achando que escrevi um livro e tudo que fiz foi mijar numas folhas de papel. Ás vezes eu esqueço como se escrevem as palavras. Ás vezes passo um dia inteiro sem saber minha língua, pensando n'outra. Já perdi meu emprego. Estou exausto. O que o senhor pode fazer por mim?

**


O bisturi pingava sangue quando ele acordou de repente. Tinha as meninges brutalmente reviradas. Um de seus lóbulos cerebrais estava sendo cuidadosamente repartido. Quis gritar, mas estava anestesiado:

- Como faço para provar que não estou louco?

E tudo o que ouviu foi um bipe contínuo do monitor cardíaco.


**

- Agora babo e sujo as paredes de merda. Arrancaram todos os meus dentes. Mas tenho paz, e isso é bom. Vou acordar em cinco minutos e escrever mais um pouco.

***

E no dia seguinte os funcionários do hopício encontraram um morto e a verdade divina.

Liana Borges